por Tiago Lira
Uma das magias da arte do cinema é ser universal, ainda que certos personagens e histórias não falem exatamente sobre nós. Quase sessenta anos nos separam dos eventos Ponte dos Espiões e da Guerra Fria. Milhares de quilômetros entre o nosso país e os envolvidos naquele conflito. Ainda assim, podemos achar paralelos e perceber que a história tende a se repetir. Vivemos num mundo de extremos, onde parece que se você não está do nosso lado é automaticamente tachado de uma dezena de termos depreciativos. Essas posições polarizadas deixam pouco espaço para o diálogo, criando uma cortina de ódio perigosa e talvez sem volta. Olhar o outro lado e perceber que estamos lidando com pessoas é a maior mensagem do novo filme de Steven Spielberg, um dos maiores fãs da humanidade.
O diretor não perde tempo com rodeios e nos primeiros minutos de projeção sabemos sem sombra de dúvida que Rudolf Abel (Mark Rylance) é um espião. Essa decisão coloca a audiência, pelo menos nos primeiros momentos, numa luta de nervos contra a decisão do advogado James Donovan (Tom Hanks) de não só defende-lo, mas de ir às últimas consequências por uma convicção. Nada disso é simplesmente jogado na tela por Spielberg e pelo trio de roteiristas, mas é traçado em poucos momentos. Na primeira cena vemos Abel pintando um autorretrato mostrando não só sua veia artística, mas como um homem que está conhecendo a si mesmo. James é apresentado como alguém firme e seguro de si, observador e engraçado – tudo isso em menos de cinco minutos com poucas e precisas linhas de diálogo.
Percebemos que Jim também sabe da origem de Abel e que luta com sua fibra contra o senso comum de culpa-lo sem um julgamento justo. Ele próprio vivendo numa sociedade polarizada hesita por um curto momento em aceitar o caso, mas a batalha interna não é nada comparada com a externa. Jim, um homem que serve a lei, tem que ouvir de outras esferas da sociedade que ele estaria fazendo alguma coisa errada: um juiz, um policial e a própria família está repetindo uma propaganda sobre o medo de um ataque nuclear vindo dos seus inimigos. O que é uma crítica monstruosa de como o Estado pode segurar seu povo dentro de uma bolha de perigo constante.
Spielberg coloca diversos paralelos na história e os aplica na narrativa tanto por meio da montagem de Michael Kahn e raccords para ligar e contrapor certos momentos. No primeiro julgamento o diretor mostra Jim e Abel (e toda a corte) se levantando à presença do juiz do caso, enquanto algumas crianças na escola do filho do advogado fazem o mesmo movimento para saudar a bandeira americana. Em outra situação, Jim é mostrado entrando na Suprema Corte enquanto no outro campo de batalha Powers (Austin Stowell) embarca na sua aeronave de reconhecimento. Por meio desse elemento fílmico, Spielberg faz a junção de dois momentos que são ideologicamente estejam separados, mas que tratam da mesma coisa: uma crença.
Esse é um filme bem direto e, como já é a assinatura de Spielberg, muito humano. Assim como fez com Oscar Schindler o diretor ousa, por assim dizer, defender outro inimigo jurado dos EUA. O comunista e espião tem medos e receios, se preocupa com seu advogado verdadeiramente e é mostrado frágil – porém, não idiota. Quando o FBI invade o apartamento onde Abel está trabalhando, em meio à certa truculência, o russo está praticamente sem roupas decentes e sem os dentes. É nessa fragilidade que Spielberg continua mostrando o destino de Abel e no que Jim se segura para fazer a coisa certa. E esses três personagens – Jim, Abel e Powers – não são tão diferentes um do outro. Eles se mantêm naquilo que acreditam.
É um ponto de vista diferente. Filmes do período da Guerra Fria tem sido raros – apesar de O Agente da U.N.C.L.E também ser de 2015 – então vale a pena experimentar o que Spielberg nos trouxe. Nos perdemos junto com Jim na Alemanha Oriental, ao ponto de o estúdio não legendar as falas em alemão. Apesar da língua ser a 10ª mais falada no mundo, quantas pessoas você conhece que são fluentes nela? Assim, temos que nos orientar com a pouca experiência da língua que o advogado tem. Aliás, a mudança de foco aparece também em fatos poucos vistos por nós como o desejo de reconhecimento da República Democrática Alemã – RDA – ou a construção do muro de Berlim, já que o mais comum é o vermos já levantado.
A produção consegue em certos momentos ter uma leveza, mesmo que não durem muito. Os minutos iniciais com Jim aprontando para que o assistente não leve sua filha para sair, a perplexidade na diferente Berlim Oriental com bicicletas nos corredores ou a constante preocupação com a falta de preocupação de Abel são momentos que trarão sorrisos ao rosto da plateia. Em oposição é um filme bem sério no campo político. A fotografia de Janusz Kaminski usa cores frias tanto nos encontros de Jim com Abel quanto na congelante Berlim. Há outras cenas marcantes que valem a pena serem lembradas, em especial a do tiroteio que Jim presencia nos limites do muro e depois a tensão representada pela figura de duas duplas de atiradores de elite.
Ponte dos Espiões funciona tanto como retrato de uma época quanto a representação de que se algo é justo e certo para um, deve ser assim para todos. Há momentos de emoção e revolta, outros que deixam no ar a pergunta de como duas nações tão poderosas influenciaram negativamente o mundo, mostrando como o medo é uma arma eficaz. Longe de ser um filme de guerra nos moldes clássicos, tão pouco um de júri, é uma produção que veio em boa hora, considerando essas discussões acaloradas que hoje vemos. Pode servir para aprendermos a nos entender e discutir ao invés de agredir.
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